Leitura da imagem:
Johan Van Mullem é conhecido
pela sua perícia no que toca à representação de rostos em pintura de óleo, pela
capacidade de penetração psicológica das suas obras e pela profunda relação que
estas refletem existir entre o artista e o seu sujeito imaginário.
Nesta obra são retratados
dois rostos de tamanhos semelhantes,
interligados por extensões de ondulações no rosto de cada um deles, reforçando
a ideia de que estão intimamente relacionados. Graças ao seu fundo negro, a
obra é realçada pela denotação de movimentos e
luminosidade, o que transmite um carácter surrealista,
reforçado também pela prevalência de tons escuros (negro e castanho), que
transportam o observador para a perceção da vertente melancólica da obra, bem
como induzindo a hipótese de se tratarem de representações surreais de algo inato aos sujeitos retratados, talvez, ao invés do
retrato de características físicas. Quanto às duas faces retratadas, a primeira
face é mais facilmente percetível, pelo que se a segunda fosse isolada,
dificilmente seria reconhecida como uma face, pela falta de elementos faciais
básicos. O movimento conferido pelas pinceladas sem orientação específica
indica que a ligação entre os seres retratados envolve a transferência de
elementos de um para outro, apesar de não ser possível determinar o sentido
dessa transferência. Especulando, poderíamos pensar que a primeira face cedeu
partes de si para formar a segunda, pelo facto da primeira face aparentar ser
mais volumosa (pelo efeito tridimensional) e percetível.
Os olhos em ambos os
retratos são negros, tal como o fundo da obra, o que poderia simbolizar a
profundidade dos mesmos, a incapacidade de ver o que eles escondem por não
estarem iluminados, possivelmente devido à complexidade do que eles escondem,
até. Poderíamos ainda associar os olhos à conhecida metáfora de os considerar
espelhos da alma. Neste caso, o negro expressa o estado interior do sujeito,
que aliado às outras cores escuras destaca, mais uma vez, a melancolia que este
enverga tanto por dentro como por fora (como se comprova pela sua expressão
facial).
Além disso, poderíamos
imaginar que a junção das duas faces originaria uma cara mais bem caracterizada,
um ser mais percetível, ao contrário do que acontece quando as temos separadas.
No entanto, o ser não seria mais uniforme se assentassem em si as duas caras em
simultâneo apenas, visto que previamente ambas teriam de ser percecionadas
separadamente, para, porventura, serem depois unificadas. Atendendo à
denotação, haveria estruturas faciais, que a
segunda face não poderia sobrepor diretamente na primeira, assim como o oposto. Quanto ao significado que o
artista pretendia esconder por detrás destas duas faces, ambas ainda se abrem a
várias interpretações.
Texto Argumentativo: A Dualidade
Todo o ser humano vive
socialmente sob a impressão que transmite aos outros. De facto, são as maneiras
como um sujeito se exprime que determinam a imagem elaborada em torno dele e,
consoante o modo como alguém reage a certo acontecimento, constrói-se uma impressão da personalidade, levando, por vezes (e
erradamente), as pessoas a achar que conhecem o verdadeiro “eu” do outro. No
entanto, o “verdadeiro eu” que tantos julgam conhecer, não é mais do que uma
sombra, uma parte incerta de algo maior, uma versão deturpada da realidade que
está determinada noutro lugar e que ninguém, exceto o próprio, consegue esboçar
minimamente.
Por conseguinte, a
existência de uma pessoa engloba a existência de dois eus. Existe um eu, o que
vive e interage socialmente, o que é civilizado ou não, o que age no dia-a-dia
e que permite ser conhecido; não o pode evitar, já que se deixa conhecer pelo
modo como se expressa, até involuntariamente,
muitas vezes. O outro eu resulta de um conjunto de fatores, internos e
externos, que se conjugam, permitindo o renascimento de um novo ser que vive
profundamente na sua abstração, num lugar-outro (tão desejado pelos poetas), de
onde surgem os sonhos, os desejos, os produtos mais espantosos do intelecto, os
talentos, as aptidões, as parcelas metafísicas do próprio ser que constitui… Este
eu, resultado da evolução divergente
ao primeiro, manifesta-se primeiramente na adolescência e desenvolve-se consoante
mecanismos, internos e externos, de tal modo que o ser que emerge obriga a que
isso aconteça e força a sua vinculação - por carecer de realidade onde se
assentar.
Aquando da formação e
vinculação do segundo eu, o primeiro eu é como que “deformado”
enquanto se forma o segundo. Vejamos a transição de uma criança para a idade
adulta. A própria alteração física leva à mudança a nível corporal – que é uma
das mudanças mais percetíveis, numa visão exterior - e, pela vinculação da
criança mais desenvolvida, certos traços da criança anterior perdem-se ou
alteram-se. Na verdade, o desenvolvimento do segundo eu “desfoca” o eu que até lá existia, por roubar pequenas
partes dele e gerar outro ainda menos claro, devido à dificuldade em decifrá-lo, graças à
complexidade que engloba. Além disso, a imagem que o primeiro eu transmite é extremamente subjetiva, já que varia
consoante os seus observadores (e não poderia ser “esboçada” com exatidão pelo
próprio observado, pois poderia levar a desacordos). No entanto,
o segundo eu apenas pode ser esboçado
pelo próprio ser e é ele que o determina consoante todos os seus desejos e
vontades, já que está livre dos determinismos que impedem a ação do primeiro eu
(realidade).
É também importante
realçar que ambos os eus se
desenvolvem, mas tentam continuamente sobrepor-se até ser atingido um equilíbrio.
Por esse motivo, evoluem divergentemente, apesar de surgirem do mesmo ser base.
Logo, poderíamos entender que o segundo é um eu em formação, enquanto o
primeiro é um eu em deformação, já que o segundo o consome. Note-se que este
apenas é conscientemente moldável segundo esforços e vontades, enquanto o
primeiro não o é, pelo que se desenvolve apenas em sentido recessivo (a partir
de certo ponto) e o segundo acompanha-o desenvolvendo-se ou inalterado ou
inacessível, algumas vezes.
Por ser fruto do uso da
razão, o segundo eu seria racional, mas, precisamente por ser difícil de captar
e analisar, tratar-se-ia de um instrumento desconhecido e imprevisível se
existisse em total independência, já que não é possível aceder-lhe diretamente,
nem por quem se aperceba da sua existência. Ou seja, tanto pode ser racional
como o instrumento que o gera ou apenas incompreensível para o entendimento do
Homem, ainda.
Noutra linha de
pensamento, o primeiro eu expressa-se
no mundo físico (sob forma emocional), mas o segundo também. No entanto, isso apenas
acontece no caso de incapacidade do sujeito lidar com situações por parte do primeiro eu, já que ele apenas está
preparado para enfrentar situações que não sejam desastrosamente inesperadas. A
maioria das pessoas, assumindo ou não a existência de uma dualidade em si,
deixa, involuntariamente ou não, um dos eus dominar o seu corpo. Por outro lado,
a maioria das pessoas não dá pela existência de outra versão de si (no seu
interior). Por esse motivo, entre outros, as pessoas reagem de forma
extremamente impulsiva e descontrolada em situações adversas - em que se deixam dominar pelo seu interior, já que este vive
afastado do pensamento e da certeza da sua racionalidade própria - e até
patologias, como a bipolaridade, são evidência disso.
Por oposição, há também quem
se aperceba da sua dualidade e tente unificar um ser único, sabendo que é
composto pelas duas “facetas”, chamemos-lhe, com estimulação lúcida e
intencional do desenvolvimento do segundo
eu. Isto é possível quando há acordo entre os dois eus em formação, pelo domínio parcial do indivíduo sobre ambos. Por outro
lado, aqueles que não o percebem e aceitam passivamente as suas mudanças internas,
deixam as suas atitudes serem processadas pelo inconsciente - “sou assim porque
sou assim!” em vez do “porque sou assim?”, por exemplo -, sendo esse
inconsciente o segundo eu em ação, sem a sua
presença chegar a ser identificada.
Devido a essa procura de
um maior estado de intelecto aliado a um exercício de carácter existencialista,
é necessário entender o ser como uma dualidade e impulsionar o trabalho de
processos racionais, mentais, para estimular o desenvolvimento do tal
ser. Mas esta procura dum grau de superioridade e de sobreposição às próprias
limitações gera uma consequência muito destrutiva. Apesar de toda a construção do
ser unificado (pela gestação do segundo
eu), o primeiro eu desgasta-se
(como já dito antes), não por se tratar de um eu físico (que é do que se trata), mas por enquadrar em si a
dimensão emocional e não funcionar corretamente,
quando ela se encontra em desequilíbrio (assentada sob extremos). Este
desequilíbrio emocional associado ao exercício de fundação autónoma do eu
baseia-se na perceção de incompletude que gera a insatisfação; a sua maior
consequência negativa é a nostalgia, a melancolia, a tristeza. Em contraste, em
quem não anseia por estados intelectuais e existenciais superiores abunda a
felicidade e, em contrapartida, também a imprevisibilidade e o desequilíbrio
reacional (inconstância e imprevisibilidade a nível de reações).
Em última análise, o uso
da razão para crescimento consciente do segundo eu
(o desejado, nesse caso), leva a uma quantidade de dor que deve ser atenuada de
modo a manter a integridade de cada indivíduo, mas só lhe é possível conhecer-se
a si mesmo se conhecer a sua dualidade e a dominar. Sendo assim, é impossível
conhecer a verdadeira essência de alguém, se esse alguém não se tratar do
próprio conhecedor da dualidade que o constitui.
José Sendim, 12º C