terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Num Meio-Dia de Fim de Primavera


VIII - Num Meio-Dia de Fim de Primavera

Poema completo:
Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se ao longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas...
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães,
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em rancho pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido» -.
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres».
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
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Alberto Caeiro

Numa época em que a maioria da população mantinha uma crença muito forte na igreja católica e em Deus e em que muito poucos punham em causa a veracidade da existência de um Deus, Caeiro vai mais longe e, através deste poema, critica toda esta crença num Deus que nunca se mostrou. No núcleo da sua critica está a comparação de Jesus Cristo, a um menino, um menino da aldeia, que tem comportamentos traquinas, como qualquer criança, que “arranca flores para as deitar fora”, que “foi à caixa dos milagres e roubou três”, que “limpa o nariz ao braço direito”, “atira pedras aos burros, rouba a fruta dos pomares”, que “corre atrás das raparigas pelas estradas… E levanta-lhes a saia”.
Este poema certamente que trouxe polémica quando publicado, visto que a imagem de Jesus Cristo, da Virgem Maria e de Deus é, neste poema, retratada como sendo pessoas normais, que têm defeitos, mas maltratando particularmente a imagem de Deus que é “um velho estúpido e doente, sempre a escarrar no chão e a dizer "indecências” e a Igreja Católica como sendo estúpida, como tudo no céu.
Escolhi este poema principalmente por também não manter uma crença em Deus e na Igreja, mas também pela simplicidade e convicção com que Caeiro exprime e sua descrença numa religião e num Deus que não se mostra. Isto remete-nos para o facto, de nos seus poemas, Caeiro manter sempre um culto e uma forte ligação com a natureza e tudo aquilo que ele vê e ouve, sendo dos rostos que melhor representam o paganismo.

Ana Lara, 12ºB

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