I
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.
Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,
Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.
II
Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.
E uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.
Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.
Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.
III
Meu Deus! Meu Deus! Quem sou, que desconheço
O que sinto que sou? Quem quero ser
Mora, distante, onde meu ser esqueço,
Parte, remoto, para me não ter.
Fernando Pessoa, grande poeta e escritor português, foi um marco importantíssimo na literatura portuguesa, sendo at
é comparado a Luís Vaz de Camões. Escreveu várias obras e todas elas de grande importância e empenho por parte do poeta, pois poeta é aquele que consegue traduzir melhor por palavras aquilo que sentimos e não sabemos descrever e, em Pessoa, as suas obras são a sua biografia.
“Os poetas não têm biografia. Sua obra é a sua biografia. Pessoa, que duvidou sempre da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que se fosse directamente aos seus poemas, esquecendo os incidentes e acidentes da sua existência terrestre. Nada na sua vida é surpreendente – nada, excepto os seus poemas.”
Octávio Paz, Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo, Vega
Escolhi então este poema por ser, para mim, o supra-sumo, o grand
e, por se basear na infância, na nostalgia do bem perdido e do mundo fantástico da infância, que provoca angústia existencial, entre outros sentimentos. Este poema descreve, para mim, mais do que qualquer outro poema, o sentimento de Pessoa. Faz lembrar um outro menino, que também chorou, numa enorme estrada, que teve que percorrer.
A infância ocupa na obra (
o que é mais do que evidente, neste poema) de Fernando Pessoa, uma firme harmonia entre a realidade e o mito. O poeta mostra ao mundo todo o potencial da sua experi
ência, ao não conseguir realizar-se, idealiza ainda mais o passado. A infância é sempre sinónima de inconsciência, segurança, pureza, felicidade, entre outras. As amarguras desse mundo, sentidas pelo poeta, desaparecem com a dor de saber que esse bem é irrecuperável e, por isso, o presente do poeta é marcado por uma forte saudade da infância perdida.
O poeta sente-se descontente por não ser mais do que é, deseja regressar ao tempo
em que foi feliz e voltar a ser a criança que não pensa, só sente. A infância não desapareceu por completo, apenas está submersa na pessoa que é agora, à espera de ser recuperada, já que Pessoa decidiu ser diferente e abdicar dela. Porém, a criança, que deveria ser feliz, chora, ou seja, representa sofrimento e abandono indevido (oposição temporal).
Neste poema está descrito um sentimento de querer/vontade do sujeito poético em que se fala, na 1ª quadra, da nostalgia da infância. Na 2ª quadra, pode-se observar a imobilização psicológica por não encontrar a infância e, também, a condição/possibilidade de conseguir observar a infância perdida através do presente e, ao vê-la, poder recuperá-la ou encontrar um pouco dela em si.
Em termos de gramática, são usadas neste poema frases negativas e declarativas, com vocabulário simples, uso dos verbos copulativos [quais?] (
que mostram a dúvida do sujeito poético ao longo do poema), e evidencia-se também a oposição temporal e a interrogativa retórica [onde?]. Estes são os termos gramaticais mais utilizados e evidentes neste poema.
“Querer não é poder. Quem pôde, quis antes de poder só depois de poder. Quem quer nunca há-de poder, porque se perde em querer.”
Fernando Pessoa
Natalia Pereira 12ºB