Se não houver um “acontecimento” do dia, como a demissão de um político qualquer que justifique, por exemplo, que o serviço público lhe dedique mais de meia hora de atenção, o habitual tem sido começar-se por uma notícia daquelas que nos nossos jornais diários impressos ocupam cerca de dez linhas, estilo “Mulher esfaqueada por motivos passionais à porta de sua casa em Carcavelos” ou “Homem ia pagando 2000 contos por um almoço devido a um engano na conversão dos Euros.”
Como podemos ver, pelo último exemplo, algumas destas noticias são da ordem do quase-acontecimento, que na prática constitui um não-acontecimento. Não me espanta nada que um dia destes os telejornais portugueses abram o noticiaria com algo do tipo: Devido ao frio, mulher ia caindo de um escadote ao procurar um cachecol na parte de cima de um armário”. Nisto, veremos então toda uma equipa deslocar-se ao local do não- acontecimento , e começar a fazer um inquérito segundo as normas que aprenderam no curso de Comunicação Social. Começa-se pelo protagonista do sucedido, com a inevitável pergunta: “Como se sente neste momento, depois de ter estado quase a cair do escadote?”. Pálida, a mulher responde pela quinta vez que se sente confusa, mas está muito grata a uma vizinha que a veio prontamente ajudar. Trata-se então, conclui o repórter, de ouvir a vizinha: “Como se deu conta de que a Dona Amélia poderia ter caído do escadote?” A entrevistada, feliz por aparecer na TV, dá uma carrada de pormenores: que a Dona Amélia fez barulho e disse vários palavrões, o que não está nos hábitos da senhora; que ela andava sempre a querer subir escadotes (pode-se nesta altura tentar ouvir um psicanalista) e que foi o miar do gato que levantou suspeitas. Como o jornalista sabe que convém dar uma dimensão política e social da ocorrência, vai então interessar-se pelo problema da segurança de escadotes em Portugal: será que são seguros? Será que a ASAE não certifica a qualidade dos escadotes portugueses? Será que este escadote era um produto Tailandês? Com isto já se passaram 15 minutos, seguidos apaixonadamente pelas audiências. Neste dia, Fátima Gomes poderia ter publicado um livro ou talvez ter assistido ao concerto dos Moonspell- podemos estar certos de uma coisa: as nossas televisões não dirão nada sobre ela.
Cláudia Martins, 11ºA (António Lobo Antunes)
2 comentários:
Tirando a brilhante e original conclusão... a crónica tem um autor, Cláudia - António Lobo Antunes.
8o
gabo-lhe o bom gosto Cláudia Martins!
:x
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