domingo, 1 de junho de 2008

Portugal Inventado

Acto 1

Estúdio televisivo preparado para uma entrevista em directo. Aspecto sóbrio: decoração pobre, adequada ao ambiente profissional, em tons cinzentos e negros; mesa preta em forma de meia-lua de fronte para o público. Em cada uma das suas extremidades uma cadeira estofada vermelha. Painel com a bandeira portuguesa atrás da mesa, ao longo do estúdio. Presença de vários holofotes, focos de luz ligados e câmaras de filmar em vários pontos do estúdio.


Cena 1 – Professora Manuela Cabral (PMC), sentada na extremidade esquerda da mesa, ladeada, na extremidade direita, pela entrevistadora (E). Ambas vestem um fato de corte clássico, com blazer. A presidente traja vermelho, a entrevistadora branco. Há também um Assistente de Realização (AR).

AR – 10 segundos.

(ouve-se o genérico)

AR – 3, 2…

E (Para a câmara central.) – Boa Noite. Bem vindos à segunda parte desta Entrevista Extraordinária. Seis meses após a formação da Aliança Ibérica, o Canal de Portugal e da Galiza entrevista, em directo, a nova Primeira-ministra; a carismática ex-líder do Grupo Separatista do Norte, que após vários meses de tentativas de acordos, assinou o tratado que determina a independência da região peninsular norte do resto da recentemente formada Aliança Ibérica. (Dirige-se a Manuela Cabral) Mais uma vez, Boa noite Professora.

PMC – Boa Noite.

E – Professora, tendo já analisado as perspectivas económicas e financeiras durante a primeira parte, as nossas questões abordam agora a visão social que este governo projecta. Começo por lhe perguntar que perspectivas de evolução social tem a região nortenha, muito apesar da convicta propaganda que ambos outrora governos português e espanhol fizeram passar, alastrando a esperança da criação de uma nova super potência com a Aliança Ibérica?

PMC – (Esboça um pequeno sorriso, mantém os cotovelos em cima da mesa, com as mãos unidas, movendo-as.) O que diz respeito ao panorama social inicial que o Estado poderá enfrentar, depende em muito do rumo da mentalidade nacional.

E – E com isso pretende dizer que…?

PMC – … Que nada advirá da independência, se este novo Portugal permanecer submerso no seu fado, nos seus complexos saudosistas.

E – Crê, então, que o progresso da “nova nação” (acentua a palavra) passa pela negação dos costumes, das tradições?

PMC – Não, muito francamente. Não estendo esta ideologia a um nível tão radical, pelo que considero que nenhuma tradição deve ser ignorada, ou proibida. Mas não poderemos questionar o seu nível de qualidade, a imagem que este apego torpe, mesquinho ao provincianismo projecta em nós e no exterior? Eu não acredito no nascer para ser. Mas, por agora, vejo a extinção do estereótipo “Zé da Boina”, do “marialvismo” (vá!), tão perto como Urano.

E – Nessa linha de raciocínio, conclui que dos esforços do separatismo resultará uma nação portuguesa frustrada? Sabemos, da velha idiossincrasia portuguesa, que a região norte sempre foi mais conservadora. Como dirige um governo vanguardista este novo Portugal?

PMC – Uma nação frustrada? Qual quê!... Encomendamos alento aos galegos!... E na verdade, somos ingratos. Abraçaram-nos na luta, e fazem-no na nação. Contudo, ainda não os temos como nós. O que me deixa um tanto desolada: não mereceriam eles ser os donos dessa petulância?... (sorri, jovialmente)
Felizmente temos vários grupos, não só ministérios, dos vários campos (científicos e humanísticos), a realizar estudos e projectos. Por exemplo, o associativismo universitário portuense, em muito, coadjuvou em muito o GSN e continua-a em acção no que respeita à estrutura dos projectos governamentais. Isso denota ânsia, força, num seio de uma geração capaz.
Contudo, é como lhe digo: há problemas de ordem social que poderão constituir entraves ao Estado. Mas, como prioridade social (e até porque das outras já falamos) aspiramos a tornar a escolaridade pública, gratuita e com qualidade. E isso fará toda a diferença, especialmente porque a região norte é também a mais jovem de toda a Europa. O progresso ou o fracasso de uma nação baseia-se no conhecimento que esta possui – tentaremos estimulá-lo! – e esse estímulo não pode passar pela inflação de três valores numa nota académica, em troca de uma mensalidade de 300€, entende-me?
Existe um plano para as igualdades de direitos, no qual também a questão da educação se insere, mas não só. Também a questão da discriminação sexual, das deficiências, a discriminação socio-económica e processos de vitimização provenientes destes factores, entre outros.
Há também projectos de lei, a nível de planeamento e ordenamento de território, como a progressiva eliminação de bairros de lata, através da construção de bairros sociais; (Aparte) Temos que admitir que as TvCabo e os 150 cavalos condizem melhor com estes últimos, não é verdade?

E – Como pretende tornar o ensino exclusivamente público? (Aparte) A mulher sofre de demência aguda! (Continua, impecável) Não teme um surto de revolta? Não temerão os portugueses a expropriação das empresas privadas?

PMC – Dentro três anos, todas as escolas portuguesas serão públicas. A educação deve ser igualitária, não uma forma de hierarquização. Se os cidadãos são iguais perante a lei, então a formação destes também o deve ser. E jamais deverá ser tida como um negócio. A intervenção do Estado fica-se por aqui. Não haverá qualquer expropriação a empresas privadas.

E – Há pouco falávamos da sociedade nortenha, do seu conservadorismo.

PMC – Quanto ao conservadorismo, que na generalidade a caracteriza, não o temo. Começo a crer que os que escolheram ficar, já não procuram partidos; Procuram… Homens, diria? (ambas se riem) Além disso, lisonjeia-me o conservadorismo que coloca uma mulher de esquerda no poder.

E – Como reagirá o país, se a potência da Aliança Ibérica se realizar? Ponderará este Estado fazer parte dela?

PMC – Com todo o devido respeito, por minha experiência lhe digo – só enlaça a demagogia quem a quer. A propaganda da Aliança não busca só eleitores, mas cidadãos, mão-de-obra. Com toda a sinceridade, espero não vir a ver uma potência proletária. Duas nações não se tornam uma com um tratado. Há processos de assimilação cultural, que se estendem, se prolongam por muito tempo. Da anexação poderá haver a desigualdade entre os dois povos. E consigo já adivinhar o que fica por cima.

E – Nasceu daí a formação do GSN? De uma premissa fundamentada no medo? No terror da sublevação do sangue lusitano?

PMC – Não. O GSN brotou de um forte desejo de continuar Portugal! Não tem de ser um sonho utópico, um projecto de vida, um Quinto Império. Contudo, tem de ser a prova da afirmação nacional. De que somos capazes. De atingir a qualidade de vida e a grandiosidade que até agora não conquistamos.

E – Considera que a Aliança é um sinal de impotência das velhas nações, de Portugal particularmente, face a magnitude de outras?

PMC – Absolutamente. No entanto essa impotência, essa pequenez, é puramente psicológica, como já lhe disse que creio. O saudosismo! Nós projectamos em nós mesmos e no exterior algo que nem sempre somos. Não é a falta de inteligência que nos afecta. (Aparte) A prová-lo temos é um défice de auto-reconhecimento, de auto-estima colectiva. Isso não se revê só nesta aliança. Quantos não tiveram de (quase como se se erradicassem da pátria) viver lá fora, para serem reconhecidos? Quantas Paulas Rego, Saramagos, Antónios Damásio não o fizeram pela sobrevivência dos seus sonhos, da sua genialidade? Quantos terão de o fazer? Há um ciclo vicioso em que a única forma de afirmar o que se tem é afirmar o que se é, e vice-versa. Portugal, um novo Portugal, tem de se afirmar. Caso contrário rompe esse ciclo, restando-lhe apenas meia dúzia de biografias heróicas e um choradinho perpetuamente consagrado.


ACTO 2



Decorre em ambiente familiar; sala de estar: Decoração moderna; colorida, tendencialmente clara; traços universitários – livros, encadernações e canetas desorganizadamente empilhadas numa estante, à esquerda. Perto da estante, uma porta de acesso a uma divisão incógnita. Do lado oposto, a porta que divide a sala de estar do hall de entrada. Ouve-se o som oriundo do aparelho televisivo que repousa por cima de uma cómoda. Ao centro, de fronte para a TV, o sofá, sobre o qual se mostram os cigarros, um cinzeiro e uma pedra de marijuana.




CENA 1 – Tiago Rodrigues (T), confortavelmente estirado sobre o sofá, observando a mãe no grande ecrã, ia consumindo um charro morosamente, sorrindo, inebriado a cada bafo, como se deles extraísse o sentido da sua existência. Veste-se informalmente (jeans e t-shirt) e está descalço. Helena (H) Hippie, movimentos e discurso descontraídos.

(ouve-se a porta de entrada a abrir e fechar)

H – Já cheguei. Fui às compras. Trouxe carne, bolachas, cereais e Favaios. (olha para a sala e para o amigo) A Marri?
T – Está lá dentro. (solta o ar travado) A fazer o teste.
H – Então e a tua mamã, que tal fica na Tv?
T – Assustadoramente íntegra para a classe a que se juntou. (risos)
H – De que está a falar agora?
T - Ah! Dos renegados da pátria. Embora eu me questione sempre se não desprezam eles as raízes, que não lhes deram nada senão a fronteira. A minha mãe quer acreditar que não, talvez pelo meu irmão, que…
H – (interrompe-o) É verdade! Saiu no jornal! Então os suíços sempre lhe querem comprar a patente.
T – A minha mãe ainda espera que ele volte a Portugal, qual elefante branco, com o seu protótipo do carro a hidrogénio.
H – E ele?
T – Oh! Tenho p’ra mim qu’ele não volta tão cedo.. Este Estado ainda não tem a maturidade suficiente para os planos dele. E coitada da mamã: morre de desgosto com o filho longe.
H – Deixa ouvir, deixa ouvir (o último “deixa ouvir” é quase sussurrado)

(ouve-se da televisão “Professora, uma última pergunta: relativamente a quando nos falava do estereótipo “Zé da Boina”, e da sua persistência na sociedade moderna deste século XXI. Sabendo que ele se prende com a tradição campesina, agravada pelo atraso da democracia em Portugal, não teme que as forças monárquicas bragançanas, que em tanto apoiaram o GSN, possam vir a ter um peso, para que esta imagem, este estereótipo, não se dilua facilmente?” Diz a Professora “Não. Podemos afirmar que o monarquismo proveniente da velha Bragança, insensato e extremista, é praticamente irrelevante – tanto a nível social como partidário.”)

H – A mulher não tem papas na língua. Qualquer dia ainda lhe acontece alguma.
T – Ela é honesta. Nunca abandonou os ideais. Foi a determinação que lhe arruinou o casamento, e outras relações. Também lhe trouxe algumas quebras de tensão. A força dela é inestimável, tal como o carácter. Admiro-a.
H – Óóó… quão fófinho o filhotinho! (aperta-lhe as bochechas e abana-as) Vá, chega! Vou fazer o jantar, amanhã é a tua vez. (abandona a sala enquanto Tiago apaga o charro.)

Cena 2 – Tiago, Marianne (ruiva, cabelos encaracolados, aspecto desleixado, natural, mas bonita; sotaque francês vincado)

(Marianne entra, Tiago levanta-se)

T – Então?! (com expectativa)
M – (Abana a cabeça afirmativamente, com um sorriso emotivo)
T – Ah! Minha francesa! (Abraçam-se)

Cena 3 – Tiago, Marianne e Helena

(Helena que havia saído entra de novo)

H – Que me dize… (observa os seus semblantes sorridentes, agora com os respectivos olhos nos seus) Ó! Não me digam que o teste à salvação da humanidade deu positivo?
T – Deu sim senhora!
H – Isto é uma loucura! “P’ra contornar a tendência.” E agora? Que faço eu aos favaios? Bebo sozinha? São 23 anos de vida, mulher! Estás-te a arruinar.
M – Mais non! Está no ponto Helena! E non poderás tu reflectir um pouco sobre a questão? Até o vosso poeta diz que o melhor do mundo são as crianças! Eu posso. Sou uma privilegiada. O curso está no fim e ambos possuímos economias para ter a criança. É para contrariar a tendência, amiga!!
H – Há tantas tendências que podem contrariar! O qu’a maconha faz às vossas cabeças, por exemplo! Olha riquinha, não te arrependas. Espero que te não chegue o dia em que desejarias ter contribuído para o “suicídiô colectivô”. (ri-se) E especialmente que não isso não se passe a um Sábado à noite.
M – Non digas essas coisas Helena. Nem tu acreditas que eu sej’assim. Eu sou livre: não me incluo no universo das desinformadas, nem no das imprudentes. Nem no das egoístas. (olhar sugestivo a Helena)
H – Ai sim? E como é se sustenta um filho com um abono de família de 13 euros?
M – Non interessa. Como ia dizendo: hei-de cumprir a maternidade da primeira geração vindoura. Para que neles não corra o vosso arcaico fado, mas o fervor da revolução.
H – Oh, não quererás acrescentar o século XVIII ao ADN da criança?
M – És uma impertinente. (Alegre)
T – E tu ligas-lhe? Ela só está a espera do convite!
H – Por quem me tomas?!
T – (num tom quase clerical) Diria que de típico não tens nada! Crês em Deus todo-poderoso? Não. Crês na sua instituição representativa? Também não. E, no entanto, estás disposta a fazer um juramento junto à Cruz do Messias, que te obriga a educar o baptizado segundo as Leis de Cristo na ausência de seus pais com o intento de lhe poderes beliscar as bochechas gordas com mais força do que toda a restante gente pois tu e ninguém mais possui estatuto para tal?
H – Oh… cinco quilos de injustiça pesam essas palavras. (irónica, alegre)
T- Não sei se o baptizaremos. Não é nossa vontade, mas como não vacila esta ante a vontade de meus pais?
H – Isso, eu não sei. Contudo, tenho a certeza que se a Vossas Senhorias, Donas da Inteligência, lhes ocorre conceber um néné aos vint’e poucos anos, também decerto ocorrerá uma solução.
M – Por falar em soluções, vamos amanhã assistir à ratificação da declaração do Porto como cidade capital de Portugal?




Liliana Freitas, 11ºG

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