domingo, 12 de setembro de 2010

Caneta em punho e Fialho de Almeida no bolso


Permitam-me, meus caros, brindar-vos com um breve compêndio daquilo que foi, ou pretendia ser, um católico (e por isso respeitável) baptizado. Mas não sem antes referir que, dois séculos depois, Eça, ou aliás, o seu riso ao português, continua áureo e imaculado.
Imaginem, caríssimos comparsas, imaginem e examinem, uma inaudita igreja, com um portentoso altar e portentosos santos - sim, pois não se pode esconder que santos há bem mais pagos do que outros. Casos como o da Santa que aceitou o ofício de Srª da Agonia, revelam notabilíssima visão económica aliada a uma respeitável estratégia de marketing - ora não são os crentes agoniados crónicos?
Voltando à casa dos santos, esta permanecia abafada num respeitoso odor a corpo e sangue de Cristo, mau grado mais a corpo, para dar as boas-vindas aos emigrantes que nela iriam presenciar a absolvição do pecado original da criança.
Emigrantes de vários cantos, talvez canteiros, da esfera terrestre, em ostentação da vistosa fortuna ganha nos últimos meses que trazem esfregada no brilho dos vestidos, das anilhas e coleiras.
Perscrutem agora, caríssimos, o delicioso e erróneo francês misturado com salsa e azeite, pronto para acompanhar o cozido à portuguesa.
Mas deixemo-nos lá de visões oleosas, porque é tempo de assistir à respeitável cerimónia e o sacerdote já sua pressa pela testa abaixo.
Os padres são inegáveis criaturas complacentes com bracinhos e mãozinhas sempre disponíveis para ajudar. Outra coisa que também conseguem fazer, é parar a cerimónia para mandar calar dúzias de famintos emigrantes que assistem ao baptismo comentando o jogo de futebol do dia anterior e o ordenado do vizinho:
“Minhas senhoras, minhas senhoras, please, s’il vous plaît, tenham respeito. Silêncio para continuar a cerimónia.”
Fazia-se então respeitoso silêncio, enquanto durava o eco mental do ralhete, para logo se refazer a malha palratória das cusquices coloquiais.
Eu, presenciava brutalmente deliciada com um cenário tão encantador.
Enquanto que lá fora o calor castigava os pecadores, a fresca e confortável Igreja convidava ao circo sem bilhete exigido. Como poderia alguém dispensar tal oferta?!
E depois eram os Ámens… ditos onde se não dizem Ámens! Coisa triste e vergonhosa, pois, como é sabido, Nosso Senhor estipulou, meticulosamente, os momentos onde se deve balir o Ámen e fazer olhos tristes.
Interrompe então e uma vez mais, o sacerdote ofendido:
“Que discípulos… então não avisei que só se dizia Ámen no final de por nosso Sr Jesus Cristo?”
Mas havia chegado o momento de renunciar ao pobre Satanás, que sempre arca com as culpas, e eu já me desfazia de júbilo e prazer contidos.
O que não esperava eram os esgares duma impressionante criatura vinda, com certeza, dos confins do Inferno para me acompanhar na minha missão de herege olheiro.
Era um cadáver pestanejante com uma blusa às bolinhas. Estremeci. Na minha conversa interior ouvia-me dizer:
-É a tia do Teodorico, é mesmo a tia, encarnou…
A D.Patrocínio recrudescera da Relíquia onde Eça a deixara fechada, fizera-se carne e estava no meio de nós.
Finda a cerimónia, sucedia-se a protocolar e interminável sessão de flashes: foi logo a criancinha, de 720 horas de vida, triturada por incontáveis colos decotadíssimos, em mil poses sugeridas; ora com a chuchinha, ora sem ela; ora mais deitadinha, ora com a cabecinha mais levantada; ou dentro da soturna igreja, ou fora dela, com o sol cancerígeno acariciando-lhe o olhinho de cor azul desprotegido; ora com a fitinha, ora com a minha vontade de dela fazer uma fisga de lançamento de hóstias, modelo 305 versão DF.
Repetia constantemente de mim para mim, o que pensaria D. Patrocínio sobre tudo isto?
E sobre o copo de água?
Todo o processo envolvido no requintado provimento nutricional me pareceu, deveras, belicamente complexo e intrincado, tanto a nível sociológico como cultural:
Enfaixavam-se distintamente duas frentes de combate; dum lado a RFA, República Federal Amélie, armada biologicamente de pindériquices com sotaque, do outro a RDA, República Democrática Amália, com o seu arsenal burlesco, protegendo as suas raízes.
Subiram-me os medos pela espinha, quando reparei que as mesas não tinham lugares marcados e sendo redondas, obrigavam nitidamente a co-existência das duas faixas inimigas.
Os lavabos tornavam-se nos únicos locais pacíficos, dos quais se poderia dispor durante o período de contenda, pois ambas as partes dignificavam humanamente o alívio das águas.
D. Patrocínio desaparecera. Certamente, as touradas argumentativas que temperavam o bacalhau lhe causaram azia, mas não era o seu estado natural?
Num cantinho recatado, apesar dos guinchos dos meninos curiosos que corriam à sua volta, a criancinha dormia agora descansada, livre do pecado e ignorando divinamente o mundo em que nascera.

3 comentários:

Fátima Inácio Gomes disse...

Um regresso fulgurante, certamente ainda inflamado pelos calores estivais... falaria do "fino recorte crítico" do teu relato não tivesses tu entrado de bulldozer :D

Bela crónica e um belo exemplo para aqueles que vão, este ano, iniciar-se por estas paragens...

Nuno Areia disse...

A Cláudia deixa sempre a barra lá em cima para os outros se lixarem e baterem coa testa. Ainda bem que já não sou colega dela.

brinco
:)

Fátima Inácio Gomes disse...

Nada temas, Nuno. A Cláudia já está noutro patamar... agora, deu-lhe para o queirosiano, nós nem jogamos no mesmo campeonato para temermos as comparações ;-)
Aventura-te, homem, que eu gosto tanto de te ler :))