sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ela...





Ela.









Ele acordou. Ele sabia o que tinha a fazer. Ele era monótono, cansado, frio, velho. As primaveras corriam e ele, lentamente, vivia. Depois de todas as normas e etapas que resumem um acordar, ele olhou-a. Da janela, da única perspectiva que fazia dele, um ser. Era longe, mas da distância que prendia o seu corpo à alma, ele via-a. Cabelos louros, corpo esguio, pele clara, descalça, corria com os miúdos, corria como se voa, livre. Livre de tudo, única, assim o tempo passava, e ele via-a.
            Pouco lhe diziam os campos, todos cobertos de silvas e mato, pouco lhe importava a herança, pouco lhe importava a vida. Saia de casa excepcionais vezes, pois apesar de a sua fonte de existência ser o espaço aberto pelo qual o vento e o sol entram, por onde as cortinas azuis perdem cor, o seu corpo não se alimenta apenas de sentimento. Ao sábado de manhã, depois de fechada a janela, ele saia. Na praça havia vida. Nele havia ansiedade. A fruta mal escolhida, a janela está fechada. Voltou a casa. Abriu a janela e vivia. Os miúdos brincavam, ela cozinhava, ele olhava-a, ela era nova, ele velho. Pouco mais do que jovem ela era. Ele via-a. Ele era pouco mais do que jovem quando a via. Os cotovelos cansados de serem apoio e os dedos adormecidos pela barba branca, arranjavam novas posições, novas formas de se sentirem bem. Ele, olhava-a. Ela lá estava, sempre. Não o via, não o sentia. Ele não a deixava de sentir.
            A coragem, sempre lhe faltou, o sentimento era único, amor. Há décadas atrás ele era novo, ela pouco mais do que jovem era. Ele não a conhecia, a janela estava fechada e as cortinas azuis. Ele brincava com os garotos da idade, ele tinha família, ela era desconhecida. Até aquele dia, o pão quente do trigo semeado nos campos vizinhos chegara. E com ele vieram as mãos pálidas, o sorriso profundo, os cabelos louros, ela. Ela trazia o pão, ele aceitou o pão e a alma. Ele abriu a janela.
            Desde então os anos passaram. Ele não os sentia, sentia o vento do Outono, sentia a chuva intensa do inverno, o sol brilhante do verão, ele sentia-a.
            No dia seguinte ela não estava lá, da janela só se via o mato, as silvas, a dor. Ele não a via, Ela deixou de ser vista pouco depois de quando era jovem. Mas ele viu-a até então. Ele sentia-a até então.
            A janela estava fechada. Ele, adormeceu.


Luís Loureiro 

5 comentários:

Fátima Inácio Gomes disse...

Que maravilha! tão delicado!
Eu gosto sempre, muito, pessoalmente, da força das frases curtas. E tu consegues explorá-las, tanto na força como no ritmo.

Obrigada, Luís, por esta visita. Volta SEMPRE.

(o Luís é da colheita 2009)
:D

Vitorugo disse...

Uma colheira que ainda dá frutos... :D E bons pelos vistos...

Fátima Inácio Gomes disse...

Uma belíssima colheita, sim senhor, D.Vitor.
Fico à espera de algo teu, por aqui.
Vá lá, revelador, como é teu apanágio. Ou perdeste o jeito e a chama? :)

Tânia Daniela Falcão disse...

Está lindo! Muitos parabéns Luís:) Já tinha saudades de vir ao nosso blog:)

Fátima Inácio Gomes disse...

Disseste muito bem, Daniela, o NOSSO blogue! :)