Ela.
Ele acordou. Ele sabia o que tinha a fazer. Ele era monótono, cansado, frio, velho. As primaveras corriam e ele, lentamente, vivia. Depois de todas as normas e etapas que resumem um acordar, ele olhou-a. Da janela, da única perspectiva que fazia dele, um ser. Era longe, mas da distância que prendia o seu corpo à alma, ele via-a. Cabelos louros, corpo esguio, pele clara, descalça, corria com os miúdos, corria como se voa, livre. Livre de tudo, única, assim o tempo passava, e ele via-a.
Pouco lhe diziam os campos, todos cobertos de silvas e mato, pouco lhe importava a herança, pouco lhe importava a vida. Saia de casa excepcionais vezes, pois apesar de a sua fonte de existência ser o espaço aberto pelo qual o vento e o sol entram, por onde as cortinas azuis perdem cor, o seu corpo não se alimenta apenas de sentimento. Ao sábado de manhã, depois de fechada a janela, ele saia. Na praça havia vida. Nele havia ansiedade. A fruta mal escolhida, a janela está fechada. Voltou a casa. Abriu a janela e vivia. Os miúdos brincavam, ela cozinhava, ele olhava-a, ela era nova, ele velho. Pouco mais do que jovem ela era. Ele via-a. Ele era pouco mais do que jovem quando a via. Os cotovelos cansados de serem apoio e os dedos adormecidos pela barba branca, arranjavam novas posições, novas formas de se sentirem bem. Ele, olhava-a. Ela lá estava, sempre. Não o via, não o sentia. Ele não a deixava de sentir.
A coragem, sempre lhe faltou, o sentimento era único, amor. Há décadas atrás ele era novo, ela pouco mais do que jovem era. Ele não a conhecia, a janela estava fechada e as cortinas azuis. Ele brincava com os garotos da idade, ele tinha família, ela era desconhecida. Até aquele dia, o pão quente do trigo semeado nos campos vizinhos chegara. E com ele vieram as mãos pálidas, o sorriso profundo, os cabelos louros, ela. Ela trazia o pão, ele aceitou o pão e a alma. Ele abriu a janela.
Desde então os anos passaram. Ele não os sentia, sentia o vento do Outono, sentia a chuva intensa do inverno, o sol brilhante do verão, ele sentia-a.
No dia seguinte ela não estava lá, da janela só se via o mato, as silvas, a dor. Ele não a via, Ela deixou de ser vista pouco depois de quando era jovem. Mas ele viu-a até então. Ele sentia-a até então.
A janela estava fechada. Ele, adormeceu.
Luís Loureiro
5 comentários:
Que maravilha! tão delicado!
Eu gosto sempre, muito, pessoalmente, da força das frases curtas. E tu consegues explorá-las, tanto na força como no ritmo.
Obrigada, Luís, por esta visita. Volta SEMPRE.
(o Luís é da colheita 2009)
:D
Uma colheira que ainda dá frutos... :D E bons pelos vistos...
Uma belíssima colheita, sim senhor, D.Vitor.
Fico à espera de algo teu, por aqui.
Vá lá, revelador, como é teu apanágio. Ou perdeste o jeito e a chama? :)
Está lindo! Muitos parabéns Luís:) Já tinha saudades de vir ao nosso blog:)
Disseste muito bem, Daniela, o NOSSO blogue! :)
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