quinta-feira, 13 de março de 2008

Óleo de Soledade

Entrei. A mochila cansada escorregou-me das mãos e caiu no chão. Por instantes, fiquei a contemplar aquele trapicalho junto aos meus pés, vergado e ofegante. Caiu no chão.
Carreguei-me até à cozinha enquanto observava a mochila a ficar cada vez mais só. Tinha a aula de biologia na cabeça e tinha fome na barriga. Os meus olhos de toalha, cobriram esfaimados a mesa de jantar, até repararem no papel:
“Oh Banana frita as batatas!
Nuno”
Acendi o fogão e pus o óleo a aquecer. O papel mandava-me fritar as batatas.
E aos meus sentidos, já faltava a presença de barulho. Carreguei num botão, para que logo uma figura começasse a falar de civismo e a mendigar-me atenção, mas eu não tinha trocados. Desliguei-a. Pela casa espalhou-se o silêncio da vizinha a acordar o carro e do canário a chilrear. Mas, inopinadamente, o telefone tocou para que eu atendesse...mas pensei no óleo, pelo que fingi um estado efémero de surdez. Então, o telefone, para me obrigar a subir as escadas, decidiu gritar no meu pensamento. “Será rápido”, avaliei.
“- Sim?! – ouço um choro sufocado, muito doce, muito velho.
- Quem fala?
-Paula? És tu filha? – perguntou a voz sufocada.
- Não desculpe, deve ser engano…ainda bem – pensei, já a afastar o telefone do ouvido para o desligar.
- Donde fala?
- De Barcelos.
- Ah…a minha filha quando andou na Póvoa de Lanhoso a estudar, tinha uma amiga de Barcelos. Não a conhece?
- Não, não a conheço.
- Oh minha qu’rida, como te chamas? A tua voz é tão igual à da mi neta.
- Chamo-me Cláudia.
- Que Deus te abençoe e te dê muta força, muta força e te guie… Oh minha qu’rida eu estou muto sozinha, toda a tremer....já tenho 80 anos. Vivo nesta casa há 40 anos. Quando vim p’ra Braga não havia casas nenhumas, agora tem mutas. Eu nasci em Montalegre. – soluçou em angústia.
- Minha Senhora…
- Tenho 2 filhas: uma é professora e está casada. O meu genro é vet’rinário aí em Barcelos. Olha eu tenho 2 stands de automóveis, minhas e do mê neto…dói-me tanto as artroses - dominou-a um choro aflitivo.
- Esteja calma. Então e as suas filhas? Não a visitam? (o óleo…oléo!)
- A minha filha é professora. Que idade tem a minha qu’rida?...sabe os professores, hoje em dia, estão muto mal e ela já não vem aqui e eu estou tão sozinha… – gemeu.
- Olhe minha senhora – o óleo já me queimava, com dilema, as emoções – vou pedir-lhe que ligue para o 112, está bem? Assim, vem logo alguém ajuda-la.
- Eu tinha tantos amigos em Barcelos! Conhece o dono da pastelaria Pérola? Os Azevedos?
- Como se chama a Senhora?
- Eu? Glória Cardoso.
- Senhora Glória vai fazer o que lhe disse está bem? …Ligue para o 112!
- Mas eu não vejo bem, nem sei escrever. Fui operada à pouco às vistas.
- Glória Cardoso, onde mora?
- Em Braga, moro cá à 40 anos. Deus te abençoe por falares comigo! … - os meus olhos fritos…começaram a chorar…choramos as duas sob os números de 1 a 9.
- A Sra Glória consegue andar?
- Oh filha doem-me muito as artroses – torceu-se num tom plangente.
- Faça assim, vai pôr a mão sobre o telefone, mas não carregue nos números. Ponha lá! Sente-os? – disse, morrendo a 180º.
- Eu ponho, mas o meu telefone é dos pequenos e eu carrego nos números p’ra ligar à minha filha.
- Olhe depois de desligar o telefone, vai carregar duas vezes no primeiro botão da fila de cima de todo, que está à sua esquerda, está? E a seguir carrega uma vez no que está ao lado. Duas vezes no primeiro e uma no que está ao lado.
- Deus te acompanhe e te abençoe e te dê muta força!
- Um beijo muito grande para si, Sra Glória. Um abraço muito forte...a senhora vai ficar bem. Tenho mesmo que ir é que o meu fogão está ligado.
- Ai que vais esturrar o cozido pro minha causa…Muitos obrigados minha qu’rida.
- Tudo de bom para si!
Arrastei-me pelas escadas abaixo, “Deus te acompanhe”. Desliguei o fogão. O óleo estava queimado, muito queimado. Menos do que eu, muito menos.

Vincent Van Gogh

8 comentários:

Nuno Areia disse...

"mendigar-me atenção, mas eu não tinha trocados"

ah tão giro :)

Scorpionster disse...

é, lá o fritante é lixado, trocou-me sobrancelhas por queimaduras, e nódoa no tecto, eu depois mostro-te...

Cláudia Amorim disse...

Nuno(:D)

scorpionster água...óleo?! lalala
e a burra sou eu? lala
:p

Scorpionster disse...

"e a burra sou eu?"...


queres que responda???
xD

Anónimo disse...

Oh tu aí em cima, deves querer umas cachamorradas nesse...ai...vamos lá ver a brincadeira...
:p XD

*oh peço-te, ñ respondas seria demasiado humilhante!...para TI evil

[ok,tens razão...eu usei uma colher de pau...cof]

*acho que fiz,de novo, aquilo do anfiteatro :s
desta vez com coisas minhas

Scorpionster disse...

quem precisou de uma toalhinha molhada?

Fátima Inácio Gomes disse...

Sei lá... essa do óleo fervente cheira-me a dedicatória! :P

Vou começar a não me pronunciar sobre os teus textos, porque incorro no risco de me repetir! a tua capacidade de descrever, de fazeres relações insuspeitas, de usares as metáforas com uma leveza como se integrassem o discurso comum deixam-me sempre encantada. Mais uma vez... a minha vénia!

(nota: será que a verdadeira Glória Cardoso se reverá nessa personagem!?!?! :D)

Cláudia Amorim disse...

"Sei lá... essa do óleo fervente cheira-me a dedicatória! :P"
ñ,nem tive intenção disso
já a fiz pessoalmente...:)
"(nota: será que a verdadeira Glória Cardoso se reverá nessa personagem!?!?! :D)"
hmm... (eu dpois passo cá, com mais tempo, e desenvolvo isso... creio que não)
"deixam-me sempre encantada"
oh é uma honra, pavoneia-se-me o orgulho eheh
:)
:)