quarta-feira, 9 de julho de 2008

Carta de Camillo Pessanha







[A Alberto Osóro De Castro]



(Confidencial)


Meu querido amigo


Chegado ante-hontem de Mirandella, onde me demorei um mez, encontrei hoje sobre a mesa do meu quarto o seu pobre bilhete esquecido.

Teem-me feito bem estas viajatas, mudanças de paisagem e de regímen alimenticio.

Na hospedaria de Mirandella come-se cada dia um leitão, bebe-se por copos d’agua vinho verdasco das bandas de Amarante e tem-se por convivas caixeiros do porto e batoteiros de Valle-Passos e Alijó. Muito cosido, salpicões cosidos de Vinhaes, comesanas de ensopados a nadarem em manteiga de porco, tudo carniçada sem hervagens, pimentos curtidos. Os melões de Villariça tão brutos de tamanho e do seu cheiro sexual, e uma doçaria de nomes indigestos e beatos, que parecem amaçados por mãos de freira com esperma de frade, papos d’anjo, sonhos, pasteis de Lamego, Pios IXIX. Toda esta fressura dá sobre a debilidade pelas 7 horas da tarde, e unitiliza depois toda a noite em um estupor de giboia.

Pelo mez fora, idas e vindas a Marmellos, légua e meia de cada vez , a pé, por um sol de queimar os olhos, sem pinhaes a comerem a luz. D’aqui até à Regua e da Regua para aqui, os solavancos da carripana da diligencia, com o cheiro a suor das pilecas, todas em sangue dos moscardos e do chicote, e a poeiraça que vae até às guellas e a sordidez do cocheiro, arregaçando até às ligas com um piscar de olho avinagrado as sete saias das rameiras que viajam lado a lado connosco na imperial. Como tudo isto é bíblico! Os apertões brutos, a prostituição das aldeias tão primitivamente animal, faminta no inverno e farta no verão que n’esta quadra do anno acode, muito espalhada de vestuários, das bandas de Murça e de Carrezeda, aos arraiaes e ás feiras até Viseu.

Veja se a minha hyperesthesia não avia de se adormentar.

E depois as commoções violentas até absorverem o dia, da política, empenhada e convulsionada, braço a braço, em uma terra selvagem. A indignação por causa do juiz, que pronunciou um dos quarenta sem fiança para o inutilizar na eleição de Janeiro. E as appellações e os aggravos, e as denuncias e as syndicancias, e todos os roubos e todas as violações, e as testemunhas que juram falso, e os assassínios e os engajadores, e todo aquelle horizonte, desolado de estevaes e montes maninhos, onde raro é o dia que não é morto algum homem, à foiçada, debaixo do sol rutilo.

Hoje, regularizadas as digestões e o sonno, satisfeito, indifferente, provocador, glutão, - o seu bilhete foi uma névoa que de repente veio cegar por meia hora o meu coração de tristeza. Diga-me que desenganos o levaram até Mangualde quando eu começava de me iludir? Quanto teremos de soffrer, nós todos, e eu sem sequer poder corresponder-lhe, e d’essa vez dar-lhe consolação, tanta é a minha saúde exuberante. Não lhe tenho escripto, em parte, para não o melindrar com uma carta tão lógica e tão grosseira como esta vae. Porque eu bem vejo que sou esta carta, minha alma.

Deus fade para bem o seu menino. Muitos beijos à Gigi, nossos amores e as minhas attenções à Sr.ª D. Catharina.



Lamego, 28 de Agosto




Camillo Pessanha

4 comentários:

Scorpionster disse...

o "clepsidra", por maravilhoso que seja, melhor, é, acaba por saber a pouco pelas falta de letras quando comparadas à dimensão do génio, razão pela qual tratei de procurar tudo o que pudesse sobre o homem, de preferência algo que tenha escrito, e deparei-me com um registo epistolar entre ele e seu amigo Alberto Osório de Castro, maioritariamente, quase nada a João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório...

gostei desta... bastante...

Scorpionster disse...

ah, não a encontrei na net, razão pela qual tive que passá-la toda, tentando manter-me fiel ao texto original, não estranhem os erros, não passam de um momento da língua ultrapassado...

Fátima Inácio Gomes disse...

... antes de um qualquer acordo ortográfico! :D

Voltarei para lhe/te dar a atenção devida...
:)

Scorpionster disse...

aguardando :-D...


uma coisa, a "hyperesthesia" à qual ele se refere é por ele usada para definir a sua "hiper-sensibilidade"...