Citando o nosso Cesário, "aquilo que me preocupa é o que me rodeia" e, creiam ou não, muito do que vos preocupa também me preocupa a mim, falando das aulas de Português.
Gozem estas férias... avizinha-se a vossa reta final. E, satisfeitos ou não com aquilo que vos põem no prato, a verdade é que é esse o menu que terão à mesa dos exames. Tenho tentado dar-vos essa ementa em doses pequeninas, mas vão levar com ela até ao fim :) como o óleo de fígado de bacalhau que os pais de outros tempos impingiam aos filhos...
E, por tudo isto, não resisto em deixar-vos o texto de uma escritora dos nossos tempos, que tive o privilégio de ter como professora.
E deixo-vos já a minha mensagem final: contra os Adamastores que se erguem nas aulas, por força dos programas, ou por incompetência dos professores, amem sempre a Literatura ;-)
Teolinda Gersão
Escritora
Tempo de exames no secundário, os meus
netos pedem-me ajuda para estudar português. Divertimo-nos imenso,
confesso. E eu acabei por escrever a redacção que eles gostariam de
escrever. As palavras são minhas, mas as ideias são todas deles.
Aqui ficam, e espero que vocês também se
divirtam. E depois de rirmos espero que nós, adultos, façamos alguma
coisa para libertar as crianças disto.
Redacção – Declaração de Amor à Língua Portuguesa
Vou chumbar a Língua Portuguesa, quase
toda a turma vai chumbar, mas a gente está tão farta que já nem se
importa. As aulas de português são um massacre. A professora? Coitada,
até é simpática, o que a mandam ensinar é que não se aguenta. Por
exemplo, isto: No ano passado, quando se dizia “ele está em casa”, ”em
casa” era o complemento circunstancial de lugar. Agora é o predicativo
do sujeito. “O Quim está na retrete” : “na retrete” é o predicativo do
sujeito, tal e qual como se disséssemos “ela é bonita”. Bonita é uma
característica dela, mas “na retrete” é característica dele? Meu Deus, a
setôra também acha que não, mas passou a predicativo do sujeito, e
agora o Quim que se dane, com a retrete colada ao rabo.
No ano passado havia complementos
circunstanciais de tempo, modo, lugar etc., conforme se precisava. Mas
agora desapareceram e só há o desgraçado de um “complemento oblíquo”.
Julgávamos que era o simplex a funcionar: Pronto, é tudo “complemento
oblíquo”, já está. Simples, não é? Mas qual, não há simplex nenhum,o que
há é um complicómetro a complicar tudo de uma ponta a outra: há por
exemplo verbos transitivos directos e indirectos, ou directos e
indirectos ao mesmo tempo, há verbos de estado e verbos de evento,e os
verbos de evento podem ser instantâneos ou prolongados, almoçar por
exemplo é um verbo de evento prolongado (um bom almoço deve ter
aperitivos, vários pratos e muitas sobremesas). E há verbos epistémicos,
perceptivos, psicológicos e outros, há o tema e o rema, e deve haver
coerência e relevância do tema com o rema; há o determinante e o
modificador, o determinante possessivo pode ocorrer no modificador
apositivo e as locuções coordenativas podem ocorrer em locuções
contínuas correlativas. Estão a ver? E isto é só o princípio. Se eu
disser: Algumas árvores secaram, ”algumas” é um quantificativo
existencial, e a progressão temática de um texto pode ocorrer pela
conversão do rema em tema do enunciado seguinte e assim sucessivamente.
No ano passado se disséssemos “O Zé não
foi ao Porto”, era uma frase declarativa negativa. Agora a predicação
apresenta um elemento de polaridade, e o enunciado é de polaridade
negativa.
No ano passado, se disséssemos “A
rapariga entrou em casa. Abriu a janela”, o sujeito de “abriu a janela”
era ela, subentendido. Agora o sujeito é nulo. Porquê, se sabemos que
continua a ser ela? Que aconteceu à pobre da rapariga? Evaporou-se no
espaço?
A professora também anda aflita. Pelo
vistos no ano passado ensinou coisas erradas, mas não foi culpa dela se
agora mudaram tudo, embora a autora da gramática deste ano seja a mesma
que fez a gramática do ano passado. Mas quem faz as gramáticas pode
dizer ou desdizer o que quiser, quem chumba nos exames somos nós. É uma
chatice. Ainda só estou no sétimo ano, sou bom aluno em tudo excepto em
português, que odeio, vou ser cientista e astronauta, e tenho de gramar
até ao 12º estas coisas que me recuso a aprender, porque as acho
demasiado parvas. Por exemplo, o que acham de adjectivalização deverbal e
deadjectival, pronomes com valor anafórico, catafórico ou deítico,
classes e subclasses do modificador, signo linguístico, hiperonímia,
hiponímia, holonímia, meronímia, modalidade epistémica, apreciativa e
deôntica, discurso e interdiscurso, texto, cotexto, intertexto,
hipotexto, metatatexto, prototexto, macroestruturas e microestruturas
textuais, implicação e implicaturas conversacionais? Pois vou ter de
decorar um dicionário inteirinho de palavrões assim. Palavrões por
palavrões, eu sei dos bons, dos que ajudam a cuspir a raiva. Mas estes
palavrões só são para esquecer. Dão um trabalhão e depois não servem
para nada, é sempre a mesma tralha, para não dizer outra palavra (a
começar por t, com 6 letras e a acabar em “ampa”, isso mesmo, claro.)
Mas eu estou farto. Farto até de dar
erros, porque me põem na frente frases cheias deles, excepto uma, para
eu escolher a que está certa. Mesmo sem querer, às vezes memorizo com os
olhos o que está errado, por exemplo: haviam duas flores no jardim. Ou :
a gente vamos à rua. Puseram-me erros desses na frente tantas vezes que
já quase me parecem certos. Deve ser por isso que os ministros também
os dizem na televisão. E também já não suporto respostas de cruzinhas,
parece o totoloto. Embora às vezes até se acerte ao calhas. Livros não
se lê nenhum, só nos dão notícias de jornais e reportagens, ou pedaços
de novelas. Estou careca de saber o que é o lead, parem de nos chatear.
Nascemos curiosos e inteligentes, mas conseguem pôr-nos a detestar ler,
detestar livros, detestar tudo. As redacções também são sempre sobre
temas chatos, com um certo formato e um número certo de palavras. Só
agora é que estou a escrever o que me apetece, porque já sei que de
qualquer maneira vou ter zero.
E pronto, que se lixe, acabei a redacção –
agora parece que se escreve redação. O meu pai diz que é um disparate, e
que o Brasil não tem culpa nenhuma, não nos quer impôr a sua norma nem
tem sentimentos de superioridade em relação a nós, só porque é grande e
nós somos pequenos. A culpa é toda nossa, diz o meu pai, somos muito
burros e julgamos que se escrevermos ação e redação nos tornamos logo do
tamanho do Brasil, como se nos puséssemos em cima de sapatos altos.
Mas, como os sapatos não são nossos nem nos servem, andamos por aí aos
trambolhões, a entortar os pés e a manquejar. E é bem feita, para não
sermos burros.
E agora é mesmo o fim. Vou deitar a
gramática na retrete, e quando a setôra me perguntar: Ó João, onde está a
tua gramática? Respondo: Está nula e subentendida na retrete, setôra,
enfiei-a no predicativo do sujeito.
5 comentários:
E acabamos o ano em grande com esta redacção que pelos vistos agora é redação, ahaha. Gostei muito! Boas férias (:
Ainda bem, Mayara! É bom acabar com um sorriso :)
Que corra tudo bem nos exames ;-)
8º ano? muito bom!!!
Não se pode chumbar um sentido de humor destes =)
Concordo :)
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