Ontem não pude vir cá, para assinalar os 100 anos do nascimento de Miguel Torga, mas nunca é tarde para prestar homenagem a quem nos lembra que o Homem pode ser sempre Maior! E o Poeta, então, esse... nunca morre.
E o Poeta morreu.
A sombra do cipreste pôde enfim
Abraçar o cipreste.
O torrão
Caiu desfeito ao chão
Da aventura celeste.
Nenhum tormento mais, nenhuma imagem
(No caixão, ninguém pode
Fantasiar).
Pronto para a viagem
De acabar.
Só no ouvido dos versos,
Onde a seiva não corre,
Um rima perdura
A dizer com brandura
Que um Poeta não morre.
Miguel Torga
E como nunca é demais ouvir, ler, sentir Torga, peço-vos que relembrem o "Livro de Horas", o "Desfecho", o "Dies Irae", falados na aula, e deixo-vos, ainda...
Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.
Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço
Heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do mito.
E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trevas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste, de vergonha e assombro,
Gela-me o sangue, rio sem nascente,
Onde o céu, lá do alto, se reflecte,
Inútil como a paz que me promete.
3 comentários:
Orfeu Rebelde
Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade do meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.
é... ontem à noite é que a RTP2 foi potente...
Aprendi que ele gostava disto...
QUEM DEIXARÁ, DO VERDE PRADO UMBROSO
Quem deixará, do verde prado umbroso,
as frescas ervas e as lustrais nascentes?
Quem, de seguir com passos diligentes
a solta lebre, o javali cerdoso?
Quem, com o canto amigo e sonoroso,
não prenderá as aves inocentes?
Quem, nas horas da sesta, horas ardentes,
não buscará nas selvas o repouso,
por seguir os incêndios, os temores,
os zelos, iras, raivas, mortes, teias
do falso amor que tanto aflige o mundo?
Do campo são e hão sido meus amores,
rosas são e jasmins minhas cadeias,
livre nasci, e em livre ser me fundo.
Miguel Cervantes
:-)
"Guardado por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do mito."
são-me arrebatadoras estas sublimes referências mitológicas...
Obrigada, Bruno, é sempre tão bom ouvir Torga!... e até Cervantes, para o caso. :D
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